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Uma pesquisa da UFSCar, na área da Sociologia, analisou os eventos nomeados como "ataques às escolas" no Brasil e constatou, entre outros resultados, que vários discursos sobre o assunto apresentam números inflados, uma vez que eventos de diferentes dimensões são agrupados na mesma categoria de "ataques". Com isso, a pesquisa ainda constatou que o medo dos ataques pode ser muito maior do que o risco efetivo de que ondas de ataques letais ocorram em escolas brasileiras.
O estudo, intitulado "A Invenção dos ataques às escolas", foi realizado entre 2023 e 2025 por Lucas Henrique Diniz Feltrin, mestrando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) da UFSCar, com orientação da professora Jacqueline Sinhoretto, do Departamento de Sociologia (DS), e apoio financeiro Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
Modelo e desenvolvimento da pesquisa
O estudo analisou de que forma os "ataques às escolas" se constituem como uma categoria distinta de violência enquanto prática. Para tanto, desenvolveu o modelo de análise PAD estruturado em três estágios sucessivos - Preparação, Ato, Desfecho -, construído a partir da ação dos autores.
O estágio da "preparação" abrange tanto os elementos materiais mobilizados - como armas e recursos logísticos - quanto os aspectos simbólicos que antecedem a ação violenta, como o chamado "efeito contágio". O "ato em si" compreende a análise dos alvos selecionados (individuais ou coletivos), bem como dos elementos performativos que marcam a ação - uso de máscaras, símbolos ou referências político-ideológicas. O "desfecho" oferece parâmetros para avaliar a efetividade do plano executado, sobretudo em termos do número de vítimas letais e/ou feridas.
O modelo PAD foi inspirado na literatura estadunidense especializada no tema. Com o intuito de compreender como o fenômeno vem sendo abordado e quais situações têm sido consideradas como "ataques às escolas" no contexto brasileiro, o modelo foi operacionalizado nos casos relatados na literatura acadêmica e na mídia.
Ao todo, foram analisados 54 episódios, sendo 43 provenientes da bibliografia especializada. Os demais foram identificados por meio de buscas no Google, a partir dos termos "homicídio" e "tentativa de homicídio". "A decisão de incorporá-los à análise fundamenta-se na relevância da categoria 'homicídio' como critério para distinguir os ataques de outras formas de violência ocorridas no ambiente escolar", detalha Lucas Feltrin.
Números inflados
Os resultados demonstraram que a categoria "ataques às escolas" tem sido mobilizada para nomear situações que se distinguem em relação aos estágios estabelecidos no modelo. Parte dos casos classificados como ataques escolares configuram-se, por exemplo, como homicídios ou tentativas de homicídio em contexto escolar, com vítimas específicas, sem a intenção de atingir a coletividade escolar - o que excluiria o fato de ser classificado como um "ataque à escola". Além disso, são reunidas na mesma classificação ameaças e lesões leves aos casos com múltiplas vítimas fatais, o que acaba inflando os números.
"Por exemplo, episódios como os de Realengo (RJ), em 2011, e Suzano (SP), em 2019, e Aracruz (ES), em 2022, são caracterizados pelo uso de armas de fogo, pela aleatoriedade total ou parcial dos alvos e pelo elevado número de vítimas fatais - elementos que justificam, inclusive, o uso do termo 'massacre'. Em contraste, sob a mesma rubrica, incluem-se ocorrências como as de Salvador (BA), ocorrida em 2002, Cariacica (ES), em 2008, Santa Rita (PB), em 2012, e Alexânia (GO) e no bairro São Miguel Paulista, na cidade de São Paulo, em 2022, nas quais os autores miravam alvos específicos, e não a comunidade escolar como um "todo" ou de forma aleatória", compara Feltrin.
"Além disso", continua o pesquisador, "observa-se um conjunto expressivo de eventos que vêm sendo recorrentemente classificados como ataques, nos quais há indícios da intenção de atingir vários membros da comunidade escolar - o que, em tese, justificaria sua inclusão na categoria. No entanto, uma análise mais detalhada dos contextos dessas ações revela que os recursos mobilizados, as formas de execução e os desfechos diferem significativamente de outros episódios igualmente enquadrados como 'ataques às escolas'
Ilustram essa questão os casos de Campo Largo (PI), em 2019, Saquarema (RJ), em 2022, Mesquita (RJ), em 2022 e Monte-Mor (SP), em 2023, nos quais o intento de atingir a comunidade escolar foi frustrado, resultando na ausência de vítimas fatais e/ou feridas; e também as situações em que não é clara a intenção de atacar a comunidade escolar, como nos casos de Sobral (CE), em 2022, Belém (PA), em 2023. "Tais evidências parecem reforçar a heterogeneidade dos eventos agrupados sob a rubrica 'ataques às escolas'".
"Invenção"
Um aspecto que o pesquisador da UFSCar destaca foi a escolha do termo "invenção", "que, além de evidenciar os fundamentos epistemológicos do estudo, também exprime a emergência e consolidação da categoria ´ataques´ que possibilitou a ressignificação de diferentes formas de violência letal ou potencialmente letal relatadas em ambientes escolares entre 2001 e 2023.
Nesse sentido, observa-se que alguns dos eventos ocorridos no período entre 2001 e 2022, hoje classificados como ataques, são resultado de um processo de reconstrução do passado, impulsionado por episódios mais recentes. Assim, a recorrente veiculação da afirmação "no Brasil, houve 36 ataques de violência extrema entre 2001 e 2023", amplamente difundida desde outubro de 2023, ilustra como a consolidação dessa categoria conceitual tem orientado uma reinterpretação retrospectiva das violências ocorridas no ambiente escolar, redefinindo os parâmetros do que se compreende como um "ataque".
Conflitos nas escolas
Outra questão foi analisar de que forma os diagnósticos sobre os ataques às escolas têm sido mobilizados para justificar práticas de controle e de administração de conflitos no ambiente escolar.
Nos dois últimos capítulos da dissertação, o autor buscou compreender como tais diagnósticos vêm influenciando a percepção sobre o "estado" da violência nas escolas brasileiras, especialmente no que diz respeito à legitimação de propostas elaboradas por atores políticos e instituições públicas para intervir nesses espaços a partir da lógica do controle do crime.
São exemplos desse controle: contratação de seguranças (armados ou não), criação de botões de pânico, intensificação das rondas escolares e recrudescimento das penas para delitos como homicídio e lesão corporal dolosa ocorridos no ambiente escolar.
"Vale ressaltar que essa análise se insere no debate sobre a produção de saber e a gestão de conflitos, com ênfase nos regimes de verdade que conferem legitimidade a diferentes formas de controle da criminalidade, particularmente em contextos marcados pelo avanço da racionalidade neoliberal, conclui o pesquisador.
Mais informações
A defesa da dissertação de mestrado "A Invenção dos ataques às escolas", de Lucas Feltrin, está agendada para o dia 10 de junho, às 9h30, no auditório do Departamento de Sociologia (DS), na área Sul do Campus São Carlos. Mais informações sobre o estudo podem ser esclarecidas com o pesquisador Lucas Feltrin pelo e-mail lucashdfeltrin@gmail.com ou telefone/WhatsApp (17) 98132-1628.